"Eu não consigo falar estrangeiro."
E pronto, vivia um bocado infeliz, ia ter que viver sempre no mesmo sítio.
Ia poder, no máximo, conhecer dez milhões de pessoas a falar o mesmo que ele. Dez Milhões, só dez milhões, perguntam vocês. "Sim, porque os que vivem lá fora já foram infectados e não se pode dizer que os brasileiros falam português. Eu, pelo menos, não percebo nada do que eles dizem."
Começou a ficar mais calmo quando acabou os estudos básicos de matemática e, ao ver que só conhecia cinco pessoas, chegou racionalmente à conclusão de que iria precisar de sete vidas e meia para conhecer os dez milhões. E ainda corria o risco de, no processo, o número aumentar.
Só ficou mais calmo e mais próximo de não se tornar infeliz na sequência de um acontecimento triste e fora do vulgar.
Estava a ir para casa normalmente. Eram 5 da manhã e atravessava a rua a fazer piruetas, as connhecidas pirouettes tornadas famosas pelo ballet, cujo nome para ele era uma coisa estranha.
Foi cercado por um bando de portugueses bem vestidos, usando em grupo resplandescentes colarinhos brancos. Conseguia perceber quase tudo o que diziam enquanto o espancavam. Conversas acerca das mães e das filhas dos outros, e algum resmungo em estrangeiro, que tinha um ritmo semelhante à "Ave Maria".
E eles ouviam-no? Não, claro que não. À partida tinham tudo para o perceber; e ignoravam-no enquanto lhe arrancavam a perna direita.
E percebeu. Percebeu finalmente que nem sequer ia conhecer os tais dez milhões. Havia muitos que não interessavam para nada e era pouco provável que conseguisse chegar ao fim das sete vidas e meia.
Estava cada vez mais feliz com as três pessoas que conhecia (duas tinham morrido entretanto). E ficou sem uma perna, mas ao menos isso nunca o iria impedir de atravessar a rua a fazer piruetas.
E por acaso, quando fez 70 anos, recebeu como prenda um quadro com a palavra "pirouettes" lá pintada, e explicaram-lha. Apesar de tudo, aos 70 anos sentia-se um homem novo, e já sabia estrangeiro.
Pelo menos uma palavra.
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