domingo, julho 19, 2009

Ouvir desabafos é muitas vezes deprimente. Mas com o ouvido deprimido, pior ainda...

Imaginem o que é ter o ouvido deprimido e ouvir o melhor amigo a desabafar, porque ficou triste assim que soube que os pais se iam separar.

Tudo por causa de dois cortes, que consideravam essenciais para as suas vidas.

O pai já encontara a mulher da sua vida. Era ele próprio, ou seja, a Felismina, e precisava de ser operado para deixar de ser um homem. Abandonaria o pénis, e faria crescer os seios.

A mãe, por seu lado, tinha acabado de passar no exame que a ia permitir ser professora de história. Já andara, desde que descobrira as maravilhas que se descobrem ao estudar história, muito obcecada com alguns pormenores. Já tentara convencer o marido a optar pela poligamia, em homenagem a Muhammad, mas não tivera sucesso. Agora, tomara uma decisão inabalável. Ia - tinha que, como dizia - cortar o seu seio direito, em homenagem às guerreiras amazonas. «Para conseguir disparar o arco como elas! Se calhar, até melhor...»

O marido recusava-se a ficar com ela, ele que gostava tanto do seu seio direito. E ela recusava-se a ficar com ele, já que não fazia sentido nenhum, na sua cabeça, caminharem em direcções tão opostas. Seios a crescer, enquanto ela abdicava de um deles? Motivo para um divórcio.

E ele estava tão, tão triste. Ia deixar de ter família. Ia passar a ter duas mães que estariam a viver separadas. Chorou, chorou, e tomou uma decisão. Ia dormir debaixo da ponte, de três em três dias. Lá ficou mais bem-disposto, quando teve essa ideia, e abalou para a ponte mais próxima, depois de me agradecer.

E eu cá fiquei. Acreditem, ouvir desabafos destes, tão fortes e tristes, faz o ouvido ficar ainda mais deprimido...

Ouvido deprimido

O tempo passado no hospital dá-me que pensar. E os problemas vão aparecendo, mesmo depois de se alcançar a liberdade. Uns tempos depois de sair, sentia sempre vontade de bocejar. Com pouco sono, mas sempre com vontade de bocejar.

Fui ao médico. Após um fantástico e aprofundado exame, chegou a uma conclusão que deu que pensar. Estava com o ouvido deprimido.

Fiquei muito preocupado. Ia ter que tomar comprimidos. Logo antibióticos... Eu detesto tomar comprimidos. Aliás, detesto ter que tomar qualquer tipo de remédios. Ainda por cima, a tomar antibióticos, não podia beber. E calculava que a sobriedade imposta fosse tornar o ouvido ainda mais deprimido...

Antes de ir à farmácia, decidi, teimosamente, procurar o minúsculo divã para ouvidos, que curiosamente havia construído, nas aulas de Trabalhos Manuais, havia quase vinte anos... Mas não o encontrei. O meu irmão tinha-o vendido para ir ao cinema. Eu tive que ficar a tomar um prozac, ou coisa parecida, para o meu ouvido deprimido... Ainda demorou uns tempos a passar.

Pelo menos, o sacana do meu irmão conseguiu pagar o bilhete para ele, e até para a namorada, com o lucro... Mas se, por acaso, leres isto, da próxima vez pede-me dinheiro emprestado, porra...

quinta-feira, julho 16, 2009

E eu, que nunca quis fazer parte de uma matilha

Isto de um gajo ter problemas de saúde acaba por ter algumas coisas engraçadas.

Aí há uns tempos, fui forçado a ir passar umas férias alargadas a um spa bem moderno. Vivi dois meses num sítio tão bem localizado, ali perto do Marim Moniz. Pensão, Quartel, Hospital ou Prisão de S. José. Vocês hão-de conhecer um deles. Aliás, há-de existir um deles. Ou mesmo vários deles.

Antes, não me ligavam nenhuma. Gajos com o meu aspecto, dezenas; com a minha cultura, centenas; com os meus estudos, milhares; com a minha língua, milhões; com a religião que já pratiquei, ziliões; com a minha desintegração na sociedade... não conheço a palavra ao certo, mas acaba em «ões», de certeza.

Era só mais um. Mais um na matilha. Enfim, segundo consta, parece que antes era simplesmente mais um dos gajos que fazem parte da matilha dos que não querem fazer parte de nenhuma matilha. Enfim, um anódino, tolerável e pacífico.

De um momento para o outro, parecia que tinha viajado para tempos idos. Parecia que quase tinha ali (tantos) servos dedicados. Que se preocupavam como eu me sentia, como eu dormia, como eu andava ou como eu falava... (e eu nunca fui um gajo de se sentir mal; de ter pesadelos ou visões durante o sono; de ser um corredor ou um organizador de caminhadas para Fátima; nem, tampouco, um cantor de Ópera, para que ficassem tão interessados na minha voz...)

Só não se preocupavam com as minhas unhas. Mas nem precisavam de o fazer. Os visitantes partilhavam, com os servos, o peso de ter de tratar da minha aparência. E há que convir que as unhas grandes até se podem tornar perigosas...

O que me surpreendeu foi o nível da preocupação. A pergunta que os quase servos mais colocaram era, no mínimo, estranha.«Então, e tem defecado?»

Nem sei por onde começar. Entre outras coisas, há a questão da língua. «Defecar»

«Defecar» é um verbo feio. Feio, mas melhor que tantos outros. Que raio de pormenor que foram inventar. Realmente, é melhor dizer «defecar» do que «cagar», do que «borrar a sanita», e certamente bem melhor do que dizer «arrear o calhau», o que é simplesmente estúpido. Mas «caguei» para este assunto. É triste, ficar a saber assim, das «merdas» da nossa língua.

Além da questão linguística, tenho que admitir que não passava a vida a «farpar-me»1, nem tinha um aspecto fora do vulgar (no que toca à zona do sistema digestivo).

Como esta não será «A crítica da merda pura», tratarei apenas de mais um aspecto. Talvez, o mais relevante. Antes, não me ligavam. De um momento para o outro, parecia que as minhas fezes se haviam tornado figuras públicas. Como é que é possível que haja pessoas que se preocupam mais com o que sai do meu corpo, do que com os livros da Margarida Rebelo Pinto?

E antes, se era simplesmente mais um na maré, as minhas fezes acabavam por ser perfeitamente irrelevantes. Agora não. Indaguei um dos dedicados às minhas fezes.
Mais do que interessado em querer saber o porquê da importância das ditas, estava curioso acerca das opções que estas pessoas haviam feito, para chegarem a um ponto em que realmente se preocupavam muito com excrementos. Perguntei, precisamente, acerca das obras da Margarida Rebelo Pinto. A resposta do ex-compositor (segundo vim posteriormente a saber) foi simples:

«É a mesma coisa. Uma coisa sai de um, por um lado. A outra sai do outro, por outro lado. Escolhi interessar-me por algo que me permite, realmente, ajudar alguém.»

Aí, parece-me que fiquei a perceber um pouco mais. O altruísmo fazia aproximar-se mais de uma merda. Sempre é qualquer coisa. Os leitores da conhecida escritora não procuram as suas obras para ajudar ninguém. Aliás, porque é que as procuram, mesmo?



1 - Outro pormenor realmente merdoso da nossa língua. Parece que os inventores da lingua portuguesa não tinham intestinos e, daí, tivessem decidido escolher palavras e expressões feias, na melhor das hipóteses, ou mesmomuito estúpidas, também, para tudo o que tivesse a ver com os intestinos).

Talvez se diga mais vezes «a soltar uma "flatulência"» do que «uma farpa». Portanto, deveria ter dito que não sou um gajo que solte muitas flatulências, ou, se quisesse transformar o substantivo num verbo, diria que não sou um gajo que flatule muito.

Claro que, perante tal palavra, há quem prefira usar o calão... «Peidei-me» é simplesmente feio. No entanto, a infantilidade de «dei um pum» roça o ridículo. De certeza que vários de vocês brincavam com pistolas de brinquedo, quando eram crianças. E berravam, constantemente, «Pum! Pum! Pum», por vezes seguido de uma informação furiosa: «Estás morto! Morreste! Não te podes mexer!». Um gajo cresce, e vai aprendendo umas coisas. Mas ainda não percebo porque é que «Pum» era um tiro fictício, aos meus cinco anos, e agora tem só que ver com os gases. Sem ninguém me explicar nada.


quarta-feira, julho 08, 2009