quinta-feira, fevereiro 25, 2010

Na minha cama com ela

Porque é que ela aparece?

Como é que ela aparece?

Porque é que agora me lembro quase sempre dela, com o seu seu irritante sorriso?

Estou farta. Durante o dia, mal trabalho. Chego a horas, estou sentado e mantenho um ar concentrado.

E lá fico a matutar... a matutar. Lá mexo nuns papéis como se fossem tesouros como se fossem tesouros, sempre que passa alguém, e ponho-os de lado.

E depois? Depois casa, e ainda costumo apanhar a cantoria estatal na televisão, a mostrar aos miúdos que chegou a hora de ir para a cama

E ele aparece. Já jantado. Eu também, nunca espero pela sua eventual companhia. Pelo menos é querido. Tanto que quase parece com um garoto de cinco anos. E isso obriga-me a perguntar como é que lhe correu o dia, para estar tão bem-disposto (está sempre). E perde sempre cerca de meia hora a falar das aulas, dos putos, dos textos, sei lá. E não dá para evitar. Nem interromper. Lá falar, o gajo sabe.

Eu? Eu nunca falo do meu trabalho, já o avisei. Lá tenho que me repetir de quando em vez, quando se esquece e me pergunta. Mas não pára de falar. Toma a palavra pela rédea e... eu vou desaparecendo.

Passado um bocado, ela aparece. Eu já me fui embora. Subi de balão no meio das suas palavras para outro lado. Para o outro mundo. Onde não me chateio, onde os pássaros chilreiam pousados nas barrigas dos gatos que se estão a espreguiçar. De vez em quando, os gatos acabam o descanso e acordam em forma de tigres. Os canários perdem a elegância e ganham um novo vermelho. E o mundo fica feio, sujo. A luz apaga-se e acordo.

Nessas vezes, acordo nua. Ela vem-me contar o inenarrável antes de se ir embora. Fico a saber onde é que está a minha roupa, e porquê. Fico a saber onde é que não vou tomar o pequeno almoço.

E fico a olhar para a parede, sem saber o que fazer. Nunca sonho. E ainda bem. Porque tenho medo dos meus sonhos. Esse medo faz-me ficar sem dormir. Tantas vezes... O ponteiro dos segundos faz-me companhia quando finalmente fecho os olhos para tentar descansar um pouco. E não se despacha.

Finalmente, as notícias matutinas na rádio. Talvez apenas a notícia matinal, tenho que tomar banho e não posso ir nua para o trabalho. Nunca mais chega a notícia de que vou dormir sozinha, ela não a traz.

E continuo.

A amontoar papéis e a receber elogios.

A ser visitada por ela, não me deixa em paz, não consegue desaparecer.

Eu? Eu consigo. Consigo sobreviver, e ainda consigo aparecer.

segunda-feira, fevereiro 01, 2010

Congresso

Não acredito. Estou atrasado. Já só falta meia hora para o Congresso dos Corcundas Incontinentes.

Logo eu. Que fiz tudo para que surgisse o lobby dos corcundas incontinentes, o principal responsável pela referência no último volume da Enciclopédia Larousse. O criador da famosa fralda multi-funções, só para nós. Alguém imaginava, há cinco anos, que podia ter uma fralda capaz de reter os líquidos indesejados, de endireitar as costas, e ainda capaz de queimar um perfil do papa num leite-creme prestes a ser servido?

Tudo isso por minha causa... E falta cada vez menos tempo...

Nem sei como é que vou ficar visto na academia se faltar... Estou cada vez mais nervoso e acendo um cigarro. Enquanto freneticamente dou voltas à praça, começo a ficar com medo da minha bexiga. Ainda por cima hoje estou sem fraldas. Logo depois, sinto as minhas cuecas a ficarem um pouco húmidas. Deixo o cigarro ainda aceso junto ao ninho dos pombos, e fico apenas uns segundos a vê-los a apreciar o fumo... Eu detesto pombos, e quero que morram todos. E acredito na teoria do excelso professor Stevens, que defende que quando estão viciados em tabaco são mais fáceis de matar.

Evito perder-me nos meus pensamentos deliciosos sobre a morte dos pombos, e vou à casa-de-banho. Ao sair, vejo mais uma pessoa na praça. Ainda por cima, de uma minoria irritante que parece que está na moda... Anões com Síndrome de Tourette... Mas alguém acredita nessa merda?

Eles estão sempre a praguejar porque nunca conseguem comprar calças da Levi's e porque um anão com umas botas Doc Martens fica realmente ridículo. Ainda fui falar com ele, para lhe explicar o porquê da minha pressa, mas ele reconheceu-me do incidente da semana passada no autocarro, quando não só não ajudei a sua namorada anã a sentar-se (ela não chegava lá, é mesmo, mesmo, mesmo anã, e só repetia «Punheta, punheta, punheta!»), como ainda lhe roubei o lugar (estava cansado, tinha estado a jogar xadrez...).

Lá aparece um táxi, e o anão embarca nele. Ainda peço ao condutor para voltar à praça assim que possa. Obediente, demora um quarto de hora a voltar, e apanha-me, muito ansioso.

A caminho do Palácio de Cristal, começo a ficar mais relaxado com a imensidão de sinais verdes que o Josué atravessa. Porreiro, o taxista, mas com péssimo gosto musical. Já deve ser difícil para os outros, mas ouvir a Celine Dion a guinchar na rádio desconcentra-me mesmo muito. Só me vem à cabeça o raio do Titanic a desfazer-se no meio de tanta, tanta, tanta água.

Uff, a música acabou. É pá, não acredito... «Sou como um rio», dos Delfins... Estou a contorcer-me no banco de trás, quando oiço Josué:

«Está tudo bem?»

O meu «Acho que não, devia parar» é ignorado e as minhas calças de linho brancas começam a ficar amareladas.

«Foda-se, limpei a puta do carro hoje! Vou já voltar para a bomba, caguei para a tua pressa!»

E agora? Realmente, era estranho entrar no congresso com as calças amarelas, e de certeza que o Josué me quer obrigar a limpar o carro...

Estou mesmo a ver o fim desta história... Vou ser demitido da Academia...

Bem, eu já tinha dito... Congressos à terça-feira não dá para mim!